Furacão Ilma | Foto: Divulgação
Na segunda feira passada, conheci um furacão chamado Ilma. Estava eu no CRAS Engenho Pequeno numa tarde tristonha quando um vento invade a entrada do CRAS e sacode toda estrutura do espaço. Curiosamente, os furacões que lembro possuem nome feminino, não sei bem a razão, e Dona Ilma me faz pensar nessa razão. Não creio que seja pela destruição que um furacão pode causar, mas sim pela força que tem, pois o furacão Ilma transformou aquela tarde tristonha numa tarde de sorrisos.

Assim que me refiz da força da entrada do vento, comecei a observar a Dona Ilma e as pessoas riam com as palavras dela e ela também gargalhava. Ela atraiu toda a minha atenção, me hipnotizou por completo. Uma senhora franzina de estatura mediana, mas uma gigante em seu interior. Logo vi que não se tratava de uma simples demandatária do serviço social. Percebi nela uma força maior: uma força da natureza normalmente incompreendida. Ela chegou pra participar de uma das atividades do CRAS.

Quando a turma das mulheres se posicionou pra atividade, a cada fala da Dona Ilma surgia uma gargalhada e a fragilidade social daquelas mulheres se transformava numa luz e eu ali, observando e bebendo aquela alegria da Dona Ilma, que tomava conta do ambiente com suas frases marcantes e sua cantoria improvisada, logo ali no CRAS, que tem a função de promover proteção social e estava eu lá na função de orientador social, mas era eu que me sentia acolhido e abraçado por Dona Ilma. Ela, tão parecida fisicamente com a minha avó, colocou lágrimas nos meus olhos com seus conceitos de vida. Sei que centenas de pessoas podem olhar pra Dona Ilma como uma mera necessitada de atendimento psiquiátrico, mas basta dimensionar melhor sensibilidade pra perceber que nela mora uma sabedoria especial. Ela é o tipo de pessoa que desafia a indústria da depressão que ganha bilhões no planeta Terra, empurrando pessoas cada vez mais pra essa terrível doença. Quem olha pra Dona Ilma vê nela todos os fatores de risco pra um mergulho numa profunda tristeza, mas pra Dona Ilma não se olha simplesmente, pois a luz de Dona Ilma cega quem tem a percepção mais aguçada: ela brilha mais que os diamantes de Serra Leoa nas vitrines de Paris.

Por isso, no caso dela, é preciso enxergar muito, é preciso ter o olhar de um falcão e nesse olhar ser capaz de trazer pra bem perto todo sentimento que seja capaz de escancarar o peito pra que o trabalho seja o mais afetivo possível. Quando se pensa no serviço de assistência social, se pensa logo em pessoas desprotegidas. Com olhar mais aguçado, descobrimos que todos nós, de alguma forma, estamos desprotegidos. Cada desproteção tem a sua complexidade.  Então, quando derramei o meu afeto em direção a Dona Ilma, ela me fez entender que, em toda aquela alegria, foi criada de forma inteligente: uma rede de proteção ao redor dela, pois todas as agências de socialização falharam na vida dela; então ela entendeu que ela tinha que ser a própria agente da socialização dela e ela promove isso com uma alegria quase sem medida.

Sei que nem tudo é poesia, nem tudo é o fraterno. Ela vive sim longe dos laços de proteção, o que eleva o grau de risco na vida dela. Ela precisa ser protegida pelo Estado e pela sociedade. Sei que se alegria fosse algo material, seria um produto brasileiro pra exportação e Dona Ilma seria uma reserva inesgotável de alegria. O Brasil precisa abraçar Dona Ilma. As milhões de Donas Ilmas não podem ficar sem uma proteção especial formal: boa casa, bom tratamento de saúde, muito carinho. Pra isso utopicamente conto com o Estado necessário. Nesse Brasil brasileiro, enquanto eu viver as crianças e os idosos serão os primeiros.

Por Rafael Massoto, compositor, poeta e produtor cultural.